Os saudosos da indústria da loucura

 

Fonte: jornal ESTADO DE MINAS, Caderno Pensar 

Ex-presidente da Associação Mineira de Psiquiatria, 
Francisco Paes Barreto questiona a decisão da atual gestão 
de homenagear Joaquim Affonso Moretzsohn
com a denominação de sala na Associação Médica de MG 
 

Francisco Paes Barreto*

Publicação: 07/07/2017 04:00

 

Durante o 19º Congresso Mineiro de Psiquiatria, realizado em junho de 2017, na Associação Médica de Minas Gerais, a Associação Mineira de Psiquiatria (AMP) inaugurou a Sala Joaquim Affonso Moretzsohn. Na verdade, não foi apenas uma homenagem, foi uma troca. A sala da AMP na Associação Médica de MG tinha outro nome: Sala César Rodrigues Campos, psiquiatra que foi grande nome da reforma psiquiátrica de Minas Gerais. A que se deve a destituição de César Campos e a promoção de Moretzsohn?

A reforma psiquiátrica propõe como modelo de atenção a rede de serviços da saúde mental. Os ambulatórios destinam-se a consultas, exames e tratamentos mais prolongados; geralmente são situados nos centros de saúde mais próximos dos domicílios dos pacientes. Os Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams) tratam os casos de urgência. As pequenas unidades de internação estão programadas para casos que exigem regime fechado. Os centros de convivência cuidam da socialização e habilitação profissional dos usuários. E as residências assistidas recebem pequenos números de usuários que perderam a condição de convívio sócio-familiar.

É claro que a rede da saúde mental ainda se encontra em fase de implantação, com todas as dificuldades existentes num país como o Brasil, mas é uma ideia avançada, que insere os serviços na cidade, e constitui um modelo que foi adotado pelo próprio sistema de saúde como um todo.

Agora, cabe a pergunta: o que existia em Minas Gerais antes da reforma psiquiátrica?

Havia o modelo hospitalocêntrico, ou centrado no hospital. Os pacientes recebiam o tratamento mediante internação hospitalar. A atenção prévia e o seguimento pós-alta simplesmente não existiam ou eram precaríssimos. E era modelo centralizado em pequeno número de grandes cidades.

As consequências foram simplesmente trágicas. O exemplo maior da tragédia foi o Hospital Colônia de Barbacena, uma experiência que tem sido denominada hoje de holocausto brasileiro. Mas é bom não se esquecer do que ocorreu com a rede privada de hospitais psiquiátricos. Na Ditadura Militar, eles foram generosamente financiados pela Previdência Social. E o que ocorreu foi um terrível inchaço dessas instituições.

A facilidade de internação levava as famílias a se desfazerem de seus membros mais problemáticos. Por outro lado, a internação psiquiátrica era modo simples de fugir do trabalho e conseguir benefícios previdenciários, o que trazia para o hospital psiquiátrico grande número de interessados nessa estratégia, principalmente alcoolistas.

O boom dos hospitais psiquiátricos favorecia a segregação de pacientes e corrompia as relações de trabalho, numa relação espúria entre empresários e sistema previdenciário, que foi batizada de indústria da loucura. Gerou numerosos monstrengos manicomiais pelo Brasil a fora, inclusive aqui em Minas. Em pouco tempo, a Previdência Social passou a gastar mais da metade de sua verba para a saúde somente com a assistência psiquiátrica.

É nesse contexto que a reforma psiquiátrica trouxe uma proposta de transformação radical, que mexeu com as velhas estruturas e causou grandes polêmicas, que, em parte, até hoje estão em curso. O campo é complexo e as questões não se esgotam. Pode-se dizer, não obstante, que alguns temas estão definitivamente superados. Por exemplo: não há mais lugar para o modelo centrado no hospital. Fortalecer e aprimorar a rede de saúde mental é o caminho mais lógico e mais sensato.

Retornando agora ao início do artigo: Moretzsohn foi fundador e proprietário da Clínica Pinel, de Belo Horizonte, hospital psiquiátrico privado e conveniado com o sistema previdenciário; como tal, lídimo representante do que ficou caracterizado como indústria da loucura. Moretzsohn foi também presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG). Exercendo esse cargo, em 1979, durante a Ditadura Militar, abriu sindicância contra dois psiquiatras mineiros, acusando-os de infração da ética médica, por terem denunciado, por meio da imprensa leiga, a situação caótica dos hospitais psiquiátricos públicos e privados de Minas Gerais.

Imediatamente depois, porém, o secretário de Estado da Saúde, doutor Eduardo Levindo Coelho, que também já havia sido presidente do CRM-MG, deu declaração concordando com as denúncias dos dois psiquiatras e mais: abrindo as portas dos hospitais públicos para a imprensa. Veio a série de reportagens de Hiram Firmino no Estado de Minas, intitulada “Nos porões da loucura”, o 3º Congresso Mineiro de Psiquiatria e o início da reforma psiquiátrica de Minas. E o plenário do CRM-MG decidiu, por unanimidade, arquivar a sindicância aberta por Moretzsohn.

Alguns anos mais tarde, Hiram Firmino retornou a Barbacena para nova série de reportagens: “Os jardins da loucura”. Sim: a reforma psiquiátrica deixou para trás aquele panorama dantesco, preservado apenas no Museu da Loucura, hoje, atração turística da cidade.

Para terminar: a atual diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria, ao escolher o nome de Joaquim Affonso Moretzsohn para a sala, demonstra inequívocas saudades da indústria da loucura. É uma pena. Com tantas opções de escolha! Pelo visto, a diretoria terá um tenebroso passado pela frente.

* Psiquiatra e psicanalista, primeiro presidente da Associação Mineira de Psiquiatria, em 1971


RESPOSTA

Maurício Leão, presidente da Associação Mineira de Psiquiatria

A sala em questão não era nominada, de acordo com a diretoria da Associação Médica de Minas Gerais (AMMG), por isso permitiram que fosse nominada como Joaquim Affonso Moretzsohn. Todas as salas da AMMG têm nome impresso e esta sala não tem nome. A sala que tinha o nome em homenagem ao César Rodrigues Campos é da seção administrativa e passou por reforma, a seção foi uniformizada. César foi meu professor e seria o primeiro a endossar a não destituição de algum espaço público que tivesse o nome dele.

A homenagem a Joaquim Affonso Moretzsohn se deu porque ele foi um grande psiquiatra na história da psiquiatria mineira, um visionário, embora ainda dentro da lógica do sistema assistencialista da época. Foi o mais moderno para a época e tentou dar uma contribuição à psiquiatria em Minas. Além disso, ele tem uma trajetória de militância pela classe, foi presidente do Conselho Regional de Medicina, diretor da Associação Médica de MG. Foi um resgate histórico dentro das entidades médicas.

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