Minha irmã, Maria Ignez Paes Barreto, hoje com 88 anos, fez parte, em 1967, de um cruzeiro pelo rio São Francisco, com onze dias de duração, de Pirapora (MG) a Juazeiro (BA). Experiência fascinante, que, entretanto, há muito não é mais possível. O rio, degradado, com o caudal diminuído, com o leito assoreado, cheio de bancos de areia, não mais permite navegação de embarcações de maior calado. Razão pela qual considero importante algum registro daquela aventura, que, talvez, possa interessar a quem ama esse rio, famoso por sua beleza e por sua importância histórica e cultural.
O registro será feito mediante perguntas e respostas.
O Wenceslau Braz em 1967
(https://proteuseducacaopatrimonial.blogspot.com/2016/10/o-sertao-do-sao-francisco-ao-longodos.html)
Francisco Paes Barreto — Sua viagem pelo São Francisco aconteceu em 1967, de Pirapora a Juazeiro. Qual o nome do navio?
Maria Ignez Paes Barreto — Um navio-gaiola chamado Wenceslau Braz. Vários navios-gaiolas navegaram pelo São Francisco. O Wenceslau Braz era o mais apropriado para turismo.
FPB — Qual a duração da viagem?
MIPB — A duração da viagem seria de seis dias, mas, no final, foram onze dias. Isso porque o vapor encalhou em bancos de areia algumas vezes, não me lembro quantas (já existiam, portanto, bancos de areia). Nessas ocasiões, precisou de reboque. A navegação era conduzida de maneira muito precária, por marinheiros práticos, sem ajuda de instrumentos adequados. Eles eram guiados apenas pelo conhecimento do rio, seja uma árvore, uma cidade ou uma pedreira.
FPB — Quantos passageiros, quantos tripulantes?
MIPB — Éramos cerca de 20 passageiros, de diferentes cidades do Brasil, a maioria de Belo Horizonte, São Paulo e Pomerode/SC. Os tripulantes consistiam no Comandante e seu auxiliar, no pessoal da cozinha e no da limpeza.
FPB — Como era o Wenceslau Braz?
MIPB— Um vapor muito simples, praticamente sem conforto. Muito bem cuidado, e com comida saborosa (com frequência, carne de sol e peixes). Bebida, somente caipirinha. O barulho que fazia não nos deixava dormir até muito tarde. Mas, ninguém se importava com isso. Dormir? Perder o espetáculo da beleza das margens, cada uma de um jeito, e que mudava sem parar? E, além disso: conversar, ouvir um belo violão, cantar… e até fomos brindados com um luar!
FPB — Qual foi o percurso do Wenceslau Braz?
MIPB — O vapor passou por numerosos municípios. Com auxílio do mapa, mencionarei alguns.
Em Minas Gerais: o ponto de partida foi Pirapora (margem direita). E ainda: Buritis (margem esquerda), Barra do Guaicuí (município de Várzea da Palma, na margem direita), Ibiaí (md), São Romão (me), São Francisco (md), Pedras de Maria da Cruz (md), Januária (me), Matias Cardoso (md), Manga (me).
Na Bahia: Carinhanha (me), Bom Jesus da Lapa (md), Paratinga (md), Ibotirama (md), Barra (me), Xique-Xique (md), Pilão Arcado (me), Remanso, (me), Piçarrão (md), Sobradinho (md), e, por fim, Juazeiro (md).
As cidades eram avistadas ao longe, e mesmo isso nem sempre acontecia. O navio parava apenas para abastecer de lenha e suprimentos. Nessas ocasiões, descíamos para pequeno passeio na localidade. Lembro-me, apenas, de Januária, Bom Jesus da Lapa e Remanso.
FPB — Como era o convívio com as pessoas durante a viagem e quais os principais programas?
MIPB — O Comandante era pessoa muito amável. Ficar a seu lado era um prazer, enquanto ele nos chamava a atenção para a beleza das margens ou para a dificuldade da condução do vapor pelos caminhos do rio. Com os demais tripulantes tínhamos pouco contato.
Estávamos num ambiente restrito e sem comunicação com o restante do mundo. Só restava nos divertir e esquecer de tudo lá fora… Eram poucas as exigências sociais no modo de bem vestir e de se cuidar. O que importava era a boa convivência e o desfrute da viagem.
A principal atração era a paisagem deslumbrante. De manhã, à tarde e nas noites de luar. O que não nos impedia de conversar, jogar baralho ou outros jogos, ouvir um violão e cantar!
Por duas vezes foi possível um banho com segurança, no Velho Chico.
Aventura inesquecível, da qual ficaram boas lembranças e uma grande saudade!
Banhistas se divertem durante o cruzeiro.
(https://www.instagram.com/juazeiro_/p/DF3G9Hypnzs/)
O Wenceslau Braz sofreu naufrágio em 1968, na Cachoeira do Sobrado, onde hoje está localizada a barragem de Sobradinho. Foi desativado em1975, e em 1981 foi transformado em chata, para transportar carvão vegetal.
Dentre todos os navios-gaiolas do São Francisco, somente o Benjamim Guimarães, restaurado, continua navegando em pequenos passeios turísticos, a partir de Pirapora.
É o único vapor a lenha do mundo em navegação!
(https://tudoissoejanuaria.blogspot.com/2011/07/os-gaiolas-do-sao-francisco-quase.html)