Reforma Psiquiátrica & Movimento Lacaniano.

Sumário

Prefácio
Apresentação

Introdução literária
Crônicas do Hospital Santos Olhos

Capítulo I
Crítica
– Crítica do Hospital Psiquiátrico
– Análise da Instituição Psicanalítica
– Toxicomania e Ideologia
– Antipsiquiatria

Capítulo II
Clínica
– Sobre o Nascimento e os Fundamentos da Clínica
– As Psicoses e os Clássicos da Psiquiatria
– Homenagem a um Velho Psiquiatra
– Psicoses: uma Questão de Linguagem?
– O Tratamento Psicanalítico do Psicótico: Aproximações
– Psicanálise e Psiquiatria Biológica

Capítulo III
Reforma
– Carta de Fundação do Colégio Mineiro de Psicanálise
– Reestruturando a Internação Psiquiátrica
– A Reforma Psiquiátrica de Minas
– A Soberania que se Submete a uma Ética
– Em Defesa da Lei da Reforma Psiquiátrica

Capítulo IV
História
– História Mínima da Psiquiatria Mineira
– Os Caminhos de Minas
– História da Residência de Psiquiatria da FHEMIG

Conclusão literária
O Congresso (um Conto Mineiro sobre a Doença Mental)

Anexos
– Anexo 1: a Lei nº 11.802 de 15 de janeiro de 1995
– Anexo 2: Propostas de Regulamentação da Lei nº 11.802 de15 de janeiro de 1995

 

DISTRIBUIÇÃO:

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Crítica do Hospital Psiquiátrico.

Por que este artigo no Blog?

Apresentado na Mesa Redonda sobre Psiquiatria Social do II Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Belo Horizonte, em outubro de 1972, ele teve grande importância em certo momento da história da psiquiatria em nosso meio, conforme está resumido no Adendo. Mais de quarenta anos corridos, mantém-se como leitura oportuna.

 

Crítica do Hospital Psiquiátrico

Nunca a Psicologia poderá dizer a verdade sobre a    loucura, já que é essa que detém a verdade da Psicologia.
Michel Foucault

 

I.  As perspectivas da psiquiatria social

Não há concordância entre os diversos autores quanto ao significado e aos limites do que se convencionou designar de psiquiatria social  O termo abrange variedade muito grande de trabalhos, que vão desde os aspectos sócio-culturais da díade psiquiatra-paciente até o estudo comparativo das manifestações de determinada doença mental em diversas culturas.  Assim sendo, comenta-se a dificuldade de definir-se a nova disciplina, bem como a ambigüidade de sua denominação e a heterogeneidade de seus objetivos.  Para cada autor haveria uma “psiquiatria social”, e uma sistematização seria algo imperioso, para que as futuras investigações não se percam no emaranhado dos conceitos. 

Apesar de todos os obstáculos, podemos constatar que é crescente o número de trabalhos que se consideram filiados à psiquiatria social, assim como o interesse dos psiquiatras e de outros profissionais por esta área.  Nela incluímos o presente estudo.  Não queremos iniciá-lo, porém, sem apresentar algo que já foi realizado visando uma sistematização, o que poderá ser útil ao desenvolvimento de nossas reflexões.

Uma dessas tentativas, que em parte resumiremos, relaciona ––por um lado–– as funções e ––por outro lado–– os campos que têm sido identificados com a psiquiatria social.  Entre as funções, duas revestem-se de importância fundamental:

1. Assistência.

2. Pesquisa.

 

Quanto aos campos, podem ser de complexidade e magnitude ascendentes:

a) Díade psiquiatra-paciente.

b) Instituições.

c)Coletividades.

 

De  acordo com estas disposições, temos:

1a: a psiquiatria social realiza-se na relação mínima 1:1, significando a compreensão desse encontro como acontecimento sócio-cultural.  Perspectiva presente, por exemplo, na obra de SULLIVAN.   

1b: cabendo, aqui, as tarefas assistenciais que envolvem a utilização de grupos a serviço do paciente (ambientoterapia, comunidade terapêutica, atendimento da família e outras modalidades).  Nessa linha incluímos as proposições de JONES  e de ACKERMAN.

1c:  onde se situam os programas de atendimento que abrangem grandes comunidades (assistência psiquiátrica setorizada, por exemplo).  Preocupação presente no trabalho de SIVADON.

2a:  a psiquiatria social, nessa faixa, representa-se por investigações sobre a díade psiquiatra-paciente.  Mencionamos trabalho realizado entre nós por PORTELA.

2b:  abrange os estudos a respeito das instituições psiquiátricas, ou das famílias dos pacientes.  Um exemplo é a pesquisa de CAUDILL.

2c:  a psiquiatria social é relacionada com estudos e pesquisas que abarcam as coletividades.  Aproxima-se da sociologia e da antropologia cultural.  Tal como os enfoques encontrados em BASTIDE  e WITTKOWER, respectivamente.

O esquema que acabamos de apresentar é muito abrangente e faz da psiquiatria social uma disciplina hipertrofiada.  Os autores ingleses tendem a usar o termo em seus significados 1a, 1b e 1c.  Já os autores americanos preferem aqui a denominação “psiquiatria comunitária”, reservando o rótulo “psiquiatria social”  para os sentidos 2a, 2b e 2c.

Não terminaremos estas considerações sem nos determos num autor francês, BASTIDE.  Segundo sua sistematização, a psiquiatria social seria um capítulo particular da psicologia social;  esta interessar-se-ia  pela socialização do indivíduo, enquanto que aquela, por sua dessocialização.  O estudo dos grupos e das coletividades ficaria a cargo da sociologia das doenças mentais (dimensão social) e da etnopsiquiatria (dimensão cultural).  À medida em que a psiquiatria tem preocupação primordial com o indivíduo, mesmo quando recorre aos grupos e às coletividades, de acordo com BASTIDE, a psiquiatria social compreenderia os itens 1a, 1b, 1c e 2a.  Os itens 2b e 2c seriam reservados à sociologia das doenças mentais e à etnopsiquiatria.

Finalmente, cumpre registrar, ao lado destas sistematizações (e não sabemos até que ponto nelas interferindo), o enfoque que considera o “social” não como um capítulo, mas como uma dimensão da psiquiatria.

 

II – Crítica do Hospital Psiquiátrico:  Introdução

Este é um trabalho sobre os hospitais psiquiátricos de Minas Gerais. Partimos de um objetivo bem definido:  identificar as motivações ou as necessidades que, em nosso meio, têm determinado  a internação de pacientes nos hospitais psiquiátricos. É nossa intenção examinar, sobretudo, o sistema de relações interpessoais, no qual estão presentes, entre outros fatos, a exclusão de uma pessoa de seu meio sócio-familiar e a sua inclusão numa subcomunidade instituída. Para melhor exposição, passaremos em revista inicialmente os setores da comunidade envolvidos no problema, em seguida as próprias instituições psiquiátricas e por fim os pacientes (intencionalmente, em último lugar). Procurando alcançar os objetivos propostos, recorreremos a impressões e reflexões sobre nossa experiência neste campo, a estudos de autores locais e a contribuições de autores estrangeiros, que nos dispusemos a reelaborar, adequando-as à nossa realidade.

Nossa crítica é uma generalização. Quanto aos aspectos tratados neste trabalho, acreditamos que os diversos hospitais psiquiátricos mineiros difiram entre si apenas quantitativamente. Cumpre, porém, diante de cada caso concreto, precisar sua realidade. Da mesma forma, levantamos a possibilidade de analogia entre o que ocorre em Minas Gerais e em outros Estados.

Não cremos que os fenômenos aqui relatados sejam como simples adjetivos que se juntam a um substantivo e que a qualquer momento podem desligar-se dele. É o hospital psiquiátrico mineiro em sua totalidade, portanto, que está em questão.

 

III– A  Comunidade

O setor da comunidade que mais de perto nos interessa, no desenvolvimento deste trabalho, são as famílias dos pacientes. Utilizaremos ainda o termo em seu sentido geral, ou referindo-nos a outros setores diretamente implicados nas situações (organismos policiais ou de assistência social).

Que motivações poderiam conduzir uma família a internar num hospital psiquiátrico um de seus membros?

 

Terapêutica

A resposta que primeiro surge, e que parece a mais razoável, é a necessidade terapêutica. Diante de pessoa em crise, seus familiares procurariam ajudá-la, buscando no hospital  os recursos exigidos para seu tratamento.

Convém  alguns comentários sobre as concepções de doença mental e de tratamento mais comuns em nossa comunidade. Uma delas consiste em considerar a crise à semelhança de corpo estranho, que o médico (ou o místico) deve remover. Constitui recusa a admitir as vivências impugnadas como parte do paciente. Outra concepção compreende a doença como liberação caótica e despropositada de certos conteúdos da vida mental. É o indivíduo “desparafusado”, para o qual o remédio é um “parafuso”, ou seja, a supressão de tais vivências emergentes. Citaremos ainda a tendência a bipartir o paciente, diferenciando-se nele parte sã e parte enferma. É o caso, por exemplo, do familiar do alcoólatra, que nos diz: “Fulano é pessoa boníssima, seu único defeito é beber”. Assim dizendo, fica implícito um pedido: “Por favor, doutor, retire-lhe apenas o vício de beber, porque o restante está bom”. Não se percebe a relação entre o impulso à bebida e os outros aspectos da vida do paciente. Restringe-se cuidadosamente a problemática a um compartimento. O que é artifício tendencioso, pois, se formos explorar o conflito em sua real extensão, muitas vezes o próprio familiar se vê nele incluído.

O que prevalece na concepção de tratamento de nossa comunidade, como se observa, é a supressão do conflito, e não sua expressão e seu exame. Mais adiante, veremos que nossa prática psiquiátrica, habitualmente, procura efetivar as referidas exigências das famílias.

O fato de a comunidade recorrer ao hospital psiquiátrico com o propósito de ajudar o paciente ocorre numa freqüência muito menor do que se supõe. Nem sempre a intenção explícita corresponde à intenção preponderante. É muito comum, entre nós, o psiquiatra colher as informações trazidas pelos parentes e tomá-las como efetivas, numa atitude crédula que leva à visão distorcida do paciente. Embora na maioria das vezes surja da família a iniciativa da internação, raramente seus propósitos são questionados. Nos últimos anos temos caminhado neste sentido, por meio de entrevistas com os familiares e da observação de suas atitudes. Estamos convencidos de que, quando o desejo de ajudar é o principal, as atitudes da família, do paciente e do psiquiatra tendem a fazer do atendimento extramural (ambulatório, consultório) a alternativa preferida.

A esta altura, uma nova pergunta fica subentendida: Que outras finalidades estariam subjacentes à internação? Cremos haver várias respostas. Procuraremos expor as que nos parecem mais importantes.

 

Rejeição

Em primeiro lugar, a rejeição. Certa vez, ouvi de um paciente: “Existem pessoas que

possuem problemas, e existem pessoas que são problemas, e eu tenho muito medo de ser uma pessoa-problema”. Este é o caso de numerosos indivíduos dos quais as famílias procuram  livrar-se, abandonando-os nos hospitais psiquiátricos. Às vezes, são portadores de lesões orgânicas irreversíveis. Outras vezes, são personalidades profundamente transtornadas. É frequente, porém, o aspecto psiquiátrico servir apenas de pretexto, situando-se o problema em outros níveis (sócio-econômico, por exemplo).

Ao servir de abrigo para a rejeição, o hospital transforma-se em depósito de pessoas, consideradas como retalhos humanos. Sua função passa a ser  encobrir partes frágeis da comunidade, evitando contraste que poderia ser criador.

 

Segregação

Em segundo lugar, passaremos a examinar a segregação. O paciente psiquiátrico pode constituir  perigo real para a família e para a comunidade. Esta noção é bastante conhecida. O que ainda não foi suficientemente esclarecido e divulgado é o tanto que este perigo é imaginário, e o tanto que o louco é agredido pela sociedade, que nele vê refletida sua própria agressividade. Um dia na sala de admissões de um hospital público é o bastante para percebermos a hostilidade dos familiares e dos policiais no trato com os pacientes. Infelizmente, de modo mais ou menos dissimulado,  esta atitude persiste após a internação: seus pertences lhes são retirados, um macacão lhes é imposto, processa-se seu confinamento nos pátios das enfermarias superpovoadas, tudo isto num clima de relações interpessoais que seguem o modelo de extrema reificação.

A sociedade efetua uma clivagem, uma discriminação: de um lado, os doentes, isolados nos hospitais psiquiátricos, de outro, os sadios, correspondendo ao comum das pessoas. Os enfermos são escolhidos entre aqueles que evidenciam certos caracteres que a sociedade repudia e coíbe em si própria. A saúde mental, entendida como a ausência de doença mental, passa a constituir-se num dos valores mais efetivos na atualidade. A mitificação age como tranqüilizador social: a noção de doença mental emerge da necessidade de resposta para conflitos morais.    A comunidade sente-se aliviada ao trancar nos hospitais psiquiátricos aquelas características condenadas por sua censura. Assim procedendo, vive-se a ilusão de que nada daquilo tem a ver consigo, e a existência de pessoas segregadas embala esta tranqüilidade.

 

Punição

Em terceiro lugar, passaremos a considerar a punição. Em nosso meio, a idéia de saúde mental está associada à de normalidade cultural e, em consequência, a psicopatologia está baseada no desvio. Doente mental é aquele que infringiu as pautas de comportamento, ou as pautas existenciais socialmente determinadas. Explícita ou implicitamente, é a concepção dominante. Nesta perspectiva, o transgressor deve ser punido, como reparação e corrigenda. A sociedade, porém, é ambivalente. Ora defende a punição de modo aberto e incisivo, ora vê nela uma irracionalidade. Novamente, o hospital psiquiátrico aparece como solução. O regime de internação, assim compreendido, assemelha-se aos mecanismos de “formação de compromisso”, descritos por Freud. O indivíduo é punido, mas isto se faz conforme uma “terapêutica”, que dota a punição de aparência amena ou aceitável.

Parece-nos indubitável a função punitiva de nossos hospitais. A simples internação já cumpre por vezes esse fim, à medida em que exclui a pessoa de sua habitual vida familiar, sexual, profissional –atingindo todo o seu sistema de relações, portanto. Além disso, o ambiente hospitalar é comumente privador e coercitivo. A pobreza de recursos materiais (nos hospitais públicos, principalmente) e humanos (em todos), aliada à restrição de suas liberdades, faz com que os pacientes cedo percebam as “leis” da casa em que se encontram.

Certa ocasião, trabalhei numa enfermaria que estava com mais de cem pacientes, com média diária de cinco admissões, contando com dois médicos e duas ou três atendentes em cada turno. Ouvi, então, de uma paciente que havia sido internada em crise psicótica: “Isto aqui não é um hospital, é uma cadeia, e o senhor não é um médico, é um carrasco”. O psiquiatra participa da trama. Assume papel censor e punitivo, constituindo-se num suporte real para as projeções dos pacientes, com poucas possibilidades de um relacionamento novo e criativo. Na maior parte dos casos, entra em contato com o paciente quando este já foi internado. “Está na condição de alguém que assume a direção de um automóvel em movimento, com poucas possibilidades de frear, ou de escolher outro caminho”. A iniciativa parte da família, dos órgãos de assistência social, da polícia, de outros médicos –mas poucas vezes dele. Chegamos ao irônico discernimento de que a sua alienação lhe dificulta a aproximação personalizante do paciente. Suas funções já foram traçadas por outros, só lhe resta executá-las. Quando perfilamos algumas técnicas psiquiátricas (choque cardiazólico, eletrochoque, coma insulínico, lobotomia, impregnação medicamentosa), perguntamo-nos se é casualidade seu aspecto agressivo.

 

Invalidação

Em quarto lugar, incluímos a invalidação. Assim estamos denominando a ação corrosiva da liberdade de uma pessoa sobre a liberdade de outra, de tal modo que esta última termina sendo identificada como inválida ou doente mental. Esta noção, baseada no texto de Cooper, está implícita no trabalho de outros autores, que nos alertaram para o problema,.

A invalidação é processo que implica uma série de medidas adotadas por certas famílias, visando anular as tentativas de vivência autônoma de um de seus elementos. Não pretendemos nos aprofundar nesse problema. Queremos apenas afirmar que ocorre com grande frequência em nosso meio.

Todo grupo familiar possui um sistema de normas; muitas vezes, normas confusas e inflexíveis. Há situações em que uma pessoa do grupo resolve separar-se. Verifica-se, então, uma reação da parte dos outros componentes, que tentam impor sua autoridade. Se fracassam, podem ainda buscar fora da família reforço para suas pretensões. Existem casos em que a crise se torna tão grave que o ensaio de independência acaba por levar a pessoa a um hospital psiquiátrico. O psiquiatra, no consenso das famílias, quase sempre é tido como pessoa poderosa, capaz de exercer sobre a conduta qualificada como enferma influência corretiva.

Mencionaremos outra possibilidade. Existem circunstâncias em que o grupo familiar tem necessidade de eleger um de seus membros para exercer papel que comparamos ao de um pára-raios. A escolha baseia-se na fragilidade ou no tipo de personalidade do eleito. A partir de então, ele se torna o escoadouro dos impulsos hostis. Verifica-se um deslocamento: a agressividade que não pôde ser expressa em relação à pessoa apropriada, encontra no futuro doente mental alvo substitutivo.  Numerosas são as situações em que, em nossa sociedade, um indivíduo se vê na contingência de suprimir (ou de reprimir) seus impulsos agressivos. As restrições estão em todas as partes. São, porém, os fatores inconscientes que assumem importância primordial nos fenômenos referidos: além das frustrações provenientes das coibições externas, as pessoas sofrem a censura das representações fantasmáticas interiores.  Se a agressividade de algum modo não se esvair, uma ameaça começará a rondar. Há famílias que não conseguem outra saída senão a de escolher um de seus componentes como vítima. A violência é exercida, alguém é imolado em holocausto pelo grupo.

Existe maneira mais eficaz de invalidar uma pessoa que não seja a de identificá-la e fazê-la identificar-se como doente mental?

A psiquiatria seria novamente envolvida, com a finalidade de “abençoar” o sacrifício, emprestando-lhe ritual médico bem definido. Cremos que, em nosso meio, a hospitalização tem sido o recurso preferido para este fim. Embora não possamos apresentar estudo pormenorizado da complexa dinâmica familiar dos pacientes, podemos caminhar o suficiente para reconhecer evidências significativas. O caráter compulsório de grande número de internações é dado expressivo. Os pacientes não vêm, são trazidos, talvez como “eles não vivem, são vividos”. E quem os traz, geralmente, são suas famílias, as grandes esquecidas da psiquiatria. Somente nos últimos quinze anos nasceu a preocupação de estudo sistematizado e intensivo das famílias, por parte de alguns psiquiatras. Preocupação que entre nós ainda é uma esperança. Em nossa prática, ainda não fomos capazes de entender o tanto que cada família se traz através de seu paciente, ainda não conseguimos lidar com sua fragilidade exposta nele: limitamo-nos àquele que se internou, e nosso reducionismo nos frustra, pois o enigma se tornou insolúvel.

Outro dado que passaremos a comentar é o elevado índice de reinternações. Levantamentos estatísticos de um hospital público de Belo Horizonte revelam-nos que, das 7.450 admissões de pacientes da capital, ocorridas num período de sete anos, 3.463 (46,5%) foram reinternações.  Não possuímos levantamentos sobre os pacientes previdenciários, mas sabemos que nesses casos o índice é maior.

Poderia ser objetado que uma percentagem maior de reinternações não implica, por si só, a existência de processo de invalidação. Objeção importante, que nos atenta para outros fatores responsáveis pelo reingresso de um paciente num hospital psiquiátrico, mas que não chega a abalar nosso ponto de vista. Baseamo-nos também em observações não quantificáveis, algumas das quais pretendemos relatar.

Internar um paciente, em nosso meio, significa classificá-lo. A pessoa passa a ter nova identidade. Um rótulo, um enquadramento. É verdade que o processo se inicia no ambiente familiar, mas o hospital o institucionaliza. A pessoa recebe um diagnóstico. É problemática a importância do diagnóstico em psiquiatria.  Mas, além (ou ao lado) do aspecto racional do problema, existe outro, ético-irracional: o diagnóstico é discriminatório e estigmatizante. O patológico é identificado com o mau, e o patológico, aqui, é a totalidade da pessoa, ou seja, é o esquizofrênico, é o epiléptico, é o PP. Uma vez egresso do hospital, o indivíduo enfrenta, além de seus problemas anteriores, os entraves dessa nova identidade. Suas atitudes estão sujeitas à vigilância perseguidora, suas iniciativas encontram maiores resistências e suas falhas são punidas com severidade exacerbada. Quem se internou pela primeira vez é, reconhecidamente, candidato sério a novas hospitalizações. Há pouco tempo, atendi uma paciente que havia sido internada por que brigou com sua irmã. Seu corpo estava marcado pelas agressões sofridas e, na anamnese, constava que também cometera semelhantes agressões. Na entrevista, disse-me: “Eu briguei, sim, quase arranquei os cabelos dela, e eles resolveram o problema me internando;  é que eu sou a doida”.

Quando enfatizamos a violência que certas famílias praticam contra um de seus elementos, ou quando comentamos a continuação dessa violência no âmbito hospitalar, não estamos negando a interioridade dos sentimentos persecutórios. Os mecanismos projetivos exercem papel fundamental nos delírios paranóides. O que estamos tentando mostrar é a precariedade dos limites entre o mundo externo e o mundo interno. O que, em outras palavras, consiste em interrogar em que proporção a perseguição é uma realidade na interioridade do outro. Perguntaríamos ainda, com base em certos autores, se não seria mais importante, em vez da subjetividade, investigar a intersubjetividade, ou melhor ainda, o sistema de relações das pessoas atendidas.

Jackson, estudando a dinâmica familiar do paciente esquizofrênico, chegou à conclusão de que ele exerce papel de equilíbrio: sua melhora muda toda a situação intrafamiliar.  E, entre nós, é percebida por muitos a ação sabotadora que alguns familiares de psicóticos exercem sobre seu atendimento. Não seria o isolamento do paciente, então, atitude inadequada, tentativa de reduzir o irredutível? O êxito alcançado pelas técnicas psicoterápicas individuais tem-se verificado, quase sempre, com pessoas relativamente autônomas,  cujos problemas situam-se mais ao nível de sua família fantasmática. Aqueles que se encontram em nossos hospitais psiquiátricos estão num estágio anterior: ainda se ligam fortemente às suas famílias reais. Ao que tudo indica, teremos que evoluir, à procura de novas técnicas, capazes de penetrar no âmbito das crises familiares, as quais só nos tem restado sacramentar e delas remoer os escombros.

 

Benefício

Em quinto lugar, citamos o benefício. Este termo está sendo concebido como o ganho espúrio que as famílias ou a comunidade obtêm com a internação dos pacientes. O benefício advém do afastamento (ou da negação) de um problema, encontrado como o meio mais fácil de “resolvê-lo”, ou da utilização da doença como meio para a obtenção de auxílios institucionalizados. Voltaremos a falar sobre este tema, bem como sobre invalidação, em outra parte deste trabalho.

Ao fim do capítulo, alguns comentários, com o intuito de síntese. Entre as principais motivações responsáveis por nossas hospitalizações psiquiátricas, apontamos a terapêutica (entendida como terapêutica supressiva ou repressiva), a rejeição, a segregação, a punição, a invalidação e o benefício. São fatores que, nos casos concretos, estão associados, em intensidades variáveis.

Somos de opinião que nossa comunidade, ou setores dela, na maioria das vezes, utilizam a internação como meio de exercer sua agressividade em relação a certas pessoas, embora, em nível consciente ou explícito, a hospitalização se processe em nome de cuidados assistenciais.

 

IV – As  instituições  psiquiátricas

É comum certas instituições serem criadas para superar determinadas necessidades e, aos poucos, tomarem a si próprias como fim. A partir desse ponto, desvirtuam suas finalidades originais: ao invés de ajudar a comunidade a superar suas necessidades, passam a agir no sentido de perpetuá-las. Há, desse modo, um esclerosamento dessas instituições, que não mais se constituem em fator de solução, mas em fator de preservação das exigências em função das quais foram criadas. Estariam nossas instituições psiquiátricas incluídas nessa perspectiva? Acreditamos que sim. No capítulo anterior, comentamos a cobertura que dão à agressividade velada das famílias e da comunidade. Trataremos agora de examinar em que grau contribuem para a manutenção e agravamento dessas condições.

 

Os hospitais psiquiátricos

A esse respeito, nosso ponto de vista básico é que a estrutura que tem o hospital como centro transformou-se em fator de internação. O que se traduz assim: a maioria das admissões realiza-se não porque o paciente precisa, mas porque o hospital precisa. Esse é um dos motivos pelos quais a atitude invalidante encontra tanta ressonância nesses estabelecimentos assistenciais. Certa vez, cheguei à conclusão de que 70% de meus pacientes previdenciários estavam hospitalizados desnecessariamente. E que dentre os outros, muitos não teriam chegado àquele estado, se contássemos com atendimento ambulatorial adequado.

Alguns hospitais públicos constituem aparente exceção, uma vez que tudo fazem para “dar alta” aos pacientes. Mas a exceção é apenas aparente, pois, mais do que em outros lugares, ali se verifica o esclerosamento da instituição. “Dar alta” significa reduzir o ônus, acalentar a acomodação, expulsar o indesejável. O ideal desses hospitais é funcionar com o mínimo de pacientes, capaz de garantir a sua existência como hospitais. Se alguma reformulação é proposta, como, por exemplo, o redimensionamento do trabalho ambulatorial, as resistências manifestam-se com toda a intensidade.

A esta altura, torna-se oportuna a indagação:  Não seria a própria doença mental uma instituição, ou uma invenção social?  Isto pode parecer absurdo, principalmente quando dito a psiquiatras. Mas a impressão inicial não nos deve impedir de considerar cuidadosamente a questão. Iniciemos com Szasz: “A doença mental, é óbvio, não é literalmente uma ‘substância’ –ou um objeto físico– e por esta razão ela pode ‘existir’ somente do mesmo modo que outros conceitos teóricos existem”.  Diríamos que aplicar o termo doença ao que se observa ao nível da mente é admissível apenas como metáfora. E o que se tem feito é utilizar uma metáfora no seu sentido literal.

Na prática, isso acarreta várias consequências, como a de induzir à adoção do modelo médico na abordagem dos aspectos psíquicos. A sequência metodológica de exame, diagnóstico, prognóstico, tratamento e cura, bem como o critério de objetividade e o procedimento corretivo, são apropriados apenas para os aspectos somáticos. Parece-nos estranho a psiquiatria querer apegar-se a um modelo de cujos limites a própria medicina está procurando libertar-se. Em nosso meio, por exemplo, percebemos esta procura, expressa num princípio que ouvimos do cardiologista Grinbaum:  “Ver o corpo no homem, e não o homem no corpo”.

Ao extrapolar o modelo médico para o campo do psiquismo, a psiquiatria converte-se numa pseudomedicina, que opera visando retificar pessoas. Propõe-se a “retirar” a depressão do deprimido, a ansiedade do ansioso, a insônia do insone, o delírio do delirante, os desvios dos anti-sociais, e assim por diante. Trabalha visando uma ausência, que subentende uma presença, a do igualitarismo conformista e totalitário. Caricaturando, compararíamos esta tarefa à de uma indústria que utilizasse como matéria prima os doentes para, em série, tentar produzir indivíduos normais. Nossos hospitais convertem-se, assim, num  leito de Procusto para aqueles que neles ingressam.

Estamos relatando, sob vários ângulos, o fato de uma pessoa ser hospitalizada, a partir da vivência inautêntica de outras pessoas. O conceito de doença mental, nessas circunstâncias, seria construção útil para satisfazer aos anseios lógicos da civilização. Dizer que uma pessoa é doente mental significa dizer que ela tem alguma coisa. Significa circunscrever o problema a esta pessoa, mascarando suas relações interpessoais e, portanto, a envolvência de outros indivíduos na questão.

Combater o mito da doença mental não equivale, como querem alguns, a negar a importância dos fatores orgânicos. O que se procura é situar essa influência, compreendendo que, por maiores que sejam os progressos neste campo, serão necessariamente insuficientes para esclarecer o fenômeno em toda a sua complexidade. O fato de um epiléptico ter uma lesão cerebral não exclui o seu relacionamento com os outros; e é exatamente nesta convivência que a sua problemática é tecida.

Não se trata, tampouco, de negar a existência de conflitos graves que demandam cuidados específicos. O que se pretende é justamente um exame mais amplo dos conflitos, a partir da crítica de procedimento, que tem contribuído para distorcê-los e agravá-los.

Nossa afirmação inicial ––de que o hospital psiquiátrico mineiro está a serviço de necessidades alienantes da comunidade–– encontra fundamento ainda no descaso ou mesmo na oposição que ele tem exercido ao desenvolvimento da psiquiatria comunitária. No Brasil, no período de 1960 a 1965, as neuroses passaram do oitavo para o terceiro lugar de nossa nosologia hospitalar. Podemos garantir que em Minas Gerais houve mudança semelhante. Entretanto, nesse período, houve o advento dos psicofármacos e, entre nós, melhor conhecimento das técnicas psicoterápicas. Não seria este descompasso indício de que nosso hospital, além de efetuar a segregação, ainda é fator agravante?

O gigantismo hospitalar centrou-se em si próprio, e tudo o mais tornou-se apêndice.  Os ambulatórios são comprimidos e relegados, e nem esforços reiterados conseguem retirá-los desta condição. Na realidade, não existe, ou quase não existe alternativa. O psiquiatra, ao receber um paciente, vê-se de imediato na contingência de interná-lo, pois o contrário equivaleria a não o atender. Ou então a atendê-lo às pressas, numa relação rápida, superficial, pouco gratificante e pouco personalizante. A hospitalização surge como saída viável, com a vantagem de proporcionar a ilusão de cuidado mais intensivo. Mas ao ser emitida a guia, rompe-se o frágil vínculo, pois é um sistema de rodízio que designará o hospital. Por que motivo, trabalhando nesta estrutura, haveremos de reduzir toda a problemática a alguém catalogado como enfermo?

 

Os órgãos previdenciários

Um ministro de Estado, referindo-se a um de nossos órgãos previdenciários, comparou-o a um dinossauro, numa alusão ao seu porte e ao seu arcaísmo. Os gigantes estão mostrando-se impotentes diante dos problemas psiquiátricos. Tem sido atribuída a eles a responsabilidade pela atual situação da psiquiatria; ao mesmo tempo, atribui-se à psiquiatria a responsabilidade pela gravidade crescente da situação dos institutos. Este jogo, como era de se esperar, em nada muda o rumo dos acontecimentos. Há, assim, interessante simbiose, através da qual os institutos e os hospitais psiquiátricos identificam-se ao assinarem os contratos e diferenciam-se ao perceberem as falhas.

Considerando-os separadamente, observamos que, por serem a parte contratante, os órgãos previdenciários demonstram maior inquietude, face ao panorama assistencial vigente, talvez motivados pelo impacto do aumento vertiginoso das despesas e pelas pressões exercidas por beneficiários e psiquiatras. Contudo, as reformulações até agora introduzidas têm-se resumido a uma borocratização enervante e inútil, baseadas em análises simplistas e contraditórias. Exemplificando: ao mesmo tempo em que os dirigentes reclamam do excesso de internações em nossos hospitais, procurando impedi-las com ritual que tanto tem de complicado como de ineficaz, eles remuneram satisfatoriamente o cuidado hospitalar e irrisoriamente o atendimento extramural.

Por outro lado, as tentativas de reestruturação, originárias de algum hospital ou de algum grupo, perdem-se, quando defrontadas com as normas inarredáveis das volumosas instituições.

Numa oportunidade, fizemos algumas sugestões ao supervisor de um instituto, que nos respondeu: “Eu concordo com os pontos de vista de vocês, mas não posso atendê-los; eu aqui sou apenas funcionário de uma instituição.”  Esta impessoalização, que torna o indivíduo “uma peça da engrenagem”, se por um lado é tolhedora, por outro faz com que não se sinta responsável pelo que ocorre. O supervisor nos dirá que apenas obedece a um chefe, que obedece a outro chefe, que obedece a um chefão. Se nos aventurarmos a chegar ao chefão, receberemos uma resposta prudente: “Sinto muito, mas, apesar do meu cargo (ou devido a ele), não posso deferi-los; tenho que respeitar normas já estabelecidas.” Os dinossauros fixaram-se no tempo e uma das consequências de sua alienação é a hipertrofia do hospital psiquiátrico.

 

V – Os pacientes

No paciente não está a única, nem sequer a principal razão de sua internação, embora haja tendência a atribuir o fato à sua doença mental.  Abstraí-lo  de  seu mundo e estudá-lo como indivíduo isolado é cometer aprioristicamente uma cisão.  É necessário incluir, pelo menos, os familiares e os integrantes do corpo assistencial para tornar a equação compreensível. O que se tem feito, porém, visa discriminá-lo e reduzi-lo a mero objeto de tratamento. Quase todas as possibilidades de efetivar sua condição de sujeito estão bloqueadas. Ele não escolhe seu médico. Não escolhe o tipo de atendimento. Ele não remunera (na maioria dos institutos, o pagamento do paciente independe do tratamento). Não há, com o terapeuta, relacionamento íntimo e duradouro. Ele não se sente responsável pelo êxito. Acabamos por concluir que, ao seu mundo dividido, se justapõe o mundo dividido do psiquiatra.

“Não é o psiquiatra ou a sociedade que criam a loucura, mas eles são responsáveis pela maneira com que ela se cristaliza nos asilos.”  O encistamento foi a resposta que temos encontrado para aqueles que nos trazem seus conflitos. Este fenômeno, visto do ângulo do paciente, manifesta-se de duas maneiras diferentes.

A primeira é aquela na qual o paciente força a sua internação. Ocorre com grande frequência nos organismos previdenciários. Verifica-se em pessoas que demonstram indisfarçável desejo de não mudar o estado em que se encontram. Aparentemente, vêm à procura de tratamento, mas cedo se percebe que sua intenção é cristalizar os seus conflitos, ou seja: o que querem é precisamente o rótulo de doente mental (aliás, querem o que nossos hospitais lhe podem dar). Como poderíamos tornar inteligível tal comportamento? Aos motivos inconscientes, que Freud identificou com o nome de resistência, associam-se outros, que no âmbito deste trabalho nos cabe ventilar.

A identidade de inválido, em nossa sociedade, muitas vezes é algo valioso. A grande maioria dos segurados previdenciários percebe o salário mínimo, ou pouco mais do que isto. Para consegui-lo, deve cumprir tarefas árduas, além de arcar com o ônus de família geralmente numerosa. Quando uma pessoa nestas condições se vê perturbada também por conflitos de outra natureza, a internação se torna chamariz irrecusável. “Adoecer” significa desincumbir-se das obrigações profissionais e familiares. Reduzir “uma boca” em casa. Afastar o fantasma do desemprego. Candidatar-se a uma aposentadoria. Arranjar alguns biscates, que, somados à pensão, perfazem ganho muito maior. A simbiose paciente-hospital adquire, deste modo, características de modelo insuperável. É a expressão de uma civilização que cada vez mais exige dos que trabalham e que cada vez mais paternaliza a doença.

A segunda circunstância pela qual a loucura cristaliza-se em nossas instituições ocorre quando o paciente  é forçado a internar-se.  Predomina nos hospitais públicos, onde a admissão é atribuída à extravagância, à fuga da realidade ou à conduta anti-social das pessoas indiciadas.  Quando nos aproximamos delas, verificamos que geralmente vivem num ambiente humano opressivo, embora a opressão possa se processar num clima de sutileza.  Referimo-nos a essa dominação num duplo sentido: a pessoa é dominada pelos outros e por si própria (ela escolhe a situação, ou não soube preferir outra alternativa).  Sua crise pode ser concebida como tentativa desesperada de reestruturação de sua interioridade e de seu sistema de relações.  Quando um paciente nos diz que seu pensamento está sendo roubado ou advinhado, ou quando experimenta a vivência das vozes dialogantes, perguntamo-nos sobre a conveniência de investigar se isso não é reflexo da condição de quem não é existencialmente autônomo, ou de quem vive crise de libertação de pessoas reais ou eidéticas.  O psiquiatra, nessa conjuntura, é aquele que vai “curar” o paciente, ou seja, fazê-lo retornar ao estágio anterior.  Se não o consegue, ou se persiste a “desesperada tentativa de rebelião” (como Freud caracterizava a loucura), então o doente é crônico, então a internação é a sua sentença e o hospital, o seu cárcere.

Alguns querem invalidar estas hipóteses, baseando-se na “etiologia orgânica das doenças mentais”.  Seria realmente ingênuo não levar em conta esse aspecto do homem.  Sobre isso já fizemos comentários.  Compete agora perguntar se a ênfase nos fatores somáticos não constitui recusa de reconhecer a própria responsabilidade nesses problemas.

Num hospital psiquiátrico mineiro atendi, certa ocasião, uma mulher de 78 anos, viúva;  entre outras manifestações, percebi uma amnésia anterógrada, indicando a presença de processo de demência.  A paciente referia-se às filhas, residentes em Belo Horizonte, com veemente agressividade.  Dizia-se riquíssima, dona de muitas terras e de muito dinheiro, ao mesmo tempo em que denunciava suas filhas como ingratas e acusava-as por estarem querendo matá-la.  Para ela, eu e as outras pessoas do hospital fazíamos parte do mesmo complô.  Na primeira entrevista que mantive com uma das filhas, colhi suas impressões.  Sua mãe sempre fora muito nervosa.  Depois que ficou viúva (há 12 anos), passou a morar na casa dos filhos, permanecendo um período em cada uma.  Seu nervosismo aumentara aos poucos, enquanto os filhos relutavam cada vez mais em recebê-la.  Nos últimos anos mostrava-se inteiramente perturbada, e de nada tinham valido os tratamentos realizados nos hospitais psiquiátricos.  Pediu-me, encarecidamente, que a transferisse para o Hospital Colônia de Barbacena.

 

VI.  Considerações finais

Somente quem vive os problemas da assistência psiquiátrica pode avaliar as dificuldades que a prática nos apresenta.  Tais problemas coincidem, no fundamental, com os mais sérios da própria condição humana.  O que nos angustia, porém, não é isso.  É o discernimento de que nossa psiquiatria está contribuindo para ampliá-los.  É a constatação de que está padecendo das mesmas deformações, em processo que assume gravidade crescente.  Nossa crítica emerge, assim, dentro dela e contra ela.

Quando nos propusemos a escrever este trabalho, não tivemos a intenção de assumir atitude de espectador passivo, que assiste descomprometidamente aos fenômenos analisados.  Pelo contrário, procuramos vivenciar as condições de sujeito e de objeto da análise efetuada, o que faz de nossa crítica uma autocrítica.  O psiquiatra é sempre uma presença, uma parte da realidade de seu paciente e, queira ou não queira, ele sempre se envolve na questão.  Seria necessário que estivesse num outro mundo, que fosse puramente uma coisa, um deus ou um demônio, para que conseguisse isentar-se.  Nesta perspectiva,  a dúvida não é saber se deveremos ou não, mas como  nos envolveremos com as pessoas.

Trazemos dentro de nós as mesmas contradições das pessoas aqui mencionadas, e talvez seja exatamente este o motivo que nos impeliu a tentar descortiná-las.  Ao falar dos pacientes, não estamos querendo eximi-los ou purificá-los de seus conflitos e de sua agressividade.  O que estamos averiguando é a nossa responsabilidade no que acontece.  E o que estamos denunciando é o fato de estarem sendo usados como o repositório e o desaguadouro dos conflitos e da agressividade de outras pessoas.

 

Adendo

Relembrando o divisor de águas

Algumas notícias sobre o que sucedeu com esse trabalho.  Escrito para a Mesa Redonda sobre Psiquiatria Social, do II Congresso Brasileiro de Psiquiatria, ocorrido em Belo Horizonte, em outubro de 1972, foi distribuído nas pastas para todos os congressistas.  O Prof. Luiz Cerqueira, um dos componentes da referida Mesa, dedicou-lhe calorosa acolhida pública, que contribuiu para a sua leitura e divulgação.  Pouco mais tarde, foi publicado na Revista de Cultura Vozes, de maio de 1973, por indicação de Chaim Samuel Katz.  Assim, durante anos, sua divulgação ficou restrita aos meios profissionais.

O ano de 1979 foi o divisor de águas da psiquiatria mineira.  Desde os primeiros dias começou a preparação para o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, com a proposição de denunciar as condições da assistência psiquiátrica pública e privada de Minas Gerais e a apontar os caminhos da reestruturação.  Também, desde o início, os organizadores pretenderam ampliar o cenário dos debates e mobilizar a opinião pública.  Tivemos uma sucessão de acontecimentos marcantes, nos quais este trabalho teve um lugar.

Em julho de 1979, Franco Basaglia veio pela primeira vez a Minas, quando, em declarações de grande repercussão, chamou o Hospital Galba Veloso de “casa de torturas” e comparou o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena a um “campo de concentração”.  Os pronunciamentos de Basaglia, psiquiatra vitorioso na reformulação da psiquiatria de seu país, funcionaram como senha, detonando toda uma série de importantes acontecimentos.

1)  Em agosto, o Prof. Halley Bessa, representante da velha geração de psiquiatras,compareceu à imprensa para denunciar tanto os hospitais psiquiátricos públicos, chamados de “depósitos de lixo humano”, como os privados, classificados como “gaiolas de ouro”.

2)  Logo em seguida, nesse mesmo mês de agosto, decidi-me a apoiar e aprofundar as denúncias do Prof. Halley Bessa, prestando declarações ao jornalista Hiram Firmino e passando-lhe uma cópia do trabalho Crítica do Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais,  que foi publicado, quase na íntegra, no jornal Estado de Minas, numa pequena série:  A denúncia psiquiátrica (1):  A vida que se esconde nos depósitos de lixo humano  e  A denúncia psiquiátrica (fim):  Negócio de ocasião: quem dá mais por um louco?

3)  As denúncias repercutiram.  Como conseqüência, o Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais –CREMEMG– resolveu abrir sindicância contra o Prof. Halley Bessa e contra mim, acusando-nos de infringir a ética médica.  O presidente do CREMEMG pediu ao Secretário de Saúde a minha punição, por ser médico e funcionário da própria Secretaria de Saúde denunciada.

4)  Numa entrevista histórica e surpreendente, o Dr. Eduardo Levindo Coelho, Secretário de Estado da Saúde, declarou estar de acordo com as idéias de Franco Basaglia, a respeito dos manicômios, e de acordo com as críticas de Francisco Paes Barreto, ameaçado de punição pelo CREMEMG.  O Secretário de Saúde, ele próprio ex-presidente do CREMEMG, foi além:  “Os nossos hospitais psiquiátricos estão à disposição da imprensa, do rádio e da televisão.  Vocês podem entrar em qualquer um deles, até mesmo em Barbacena, e fotografar tudo o que virem.  Podem fotografar de trás para a frente, de frente para trás, do jeito que quiserem.  Nós não vamos esconder nada e, muito menos, preparar os doentes para a visita.  Se pensam que a nossa política é esconder a realidade do público, estão enganados.  A tendência mundial, e há muito nós estamos lutando por isso, é de não se construir mais hospital especializado no país, tipo manicômio.  O ideal seria que eles já nem existissem mais” (Secretário abre hospícios para a imprensa –entrevista ao jornal Estado de Minas de 13 de setembro de 1979).

5)  Com a abertura, a imprensa escrita, falada e televisada revirou os hospitais psiquiátricos públicos de Minas Gerais, tendo-se destacado a série de reportagens Nos porões da loucura, de Hiram Firmino, que mais tarde foram reunidas em livro com o mesmo nome.

6)  Valendo-se da abertura, o cineasta Helvécio Ratton produziu, em Barbacena, o curta metragem Em nome da razão.

7)  Em novembro de 1979, realizou-se o III Congresso Mineiro de Psiquiatria.  O projeto inicial de sensibilizar a opinião pública suplantou toda e qualquer expectativa.  Com as presenças de Basaglia e de Castel, houve renovação das denúncias e, mais do que isto, a elaboração de proposições.

8)  Em 1980, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais –FHEMIG–,  à qual pertencem os hospitais psiquiátricos públicos mineiros, aprovou o Projeto de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, contando com o apoio decidido de seu Superintendente Hospitalar, Dr. José Ribeiro de Paiva Filho, de seu Superintendente Geral, Dr. Archimedes Theodoro, e do Secretário de Estado da Saúde, Dr. Eduardo Levindo Coelho.  O referido Projeto acolheu as teses do III Congresso Mineiro de Psiquiatria.  Foi o início da Reforma Psiquiátrica de Minas.   

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