Os intelectuais e o marxismo

       

O sociólogo judeu Raymond Aron, colega de Sartre e de Canguilhem na famosa École Normale de Paris, escreve, em 1955, pouco depois do fim da Segunda Grande Guerra, um livro cujo título é “O ópio dos intelectuais”. Nele, critica severamente Sartre e Merleau Ponty por sua militância pró-soviética, fechando os olhos para os campos de concentração (gulags) e para as atrocidades do regime estalinista. Comenta, ainda, que o marxismo nunca encantou a classe operária. Encantou, sim, os universitários, os artistas e os jornalistas, razão pela qual merece a qualificação de ópio dos intelectuais. Observação inteiramente válida até os dias de hoje!

Raymond Aron se inscreve, na sequência de Ortega y Gasset, como autor para o qual o grande problema não é a oposição entre esquerda e direita, mas, sim, entre totalitarismo e democracia.

Uma questão se põe: a que se deve a paixão dos intelectuais pelo marxismo?

Poderia ser dito, inicialmente, que Marx é um pensador como poucos. Sua teoria do materialismo histórico redimensiona a economia e a História da humanidade. E seu empenho não se limita a interpretar o mundo, busca transformá-lo. Deixa obras importantes, tais como: “O Capital”, “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, “A Ideologia Alemã”, “Miséria da Filosofia”.

Está aí bom argumento. É necessário, não obstante, prosseguir.

A paixão dos intelectuais vai muitíssimo além desse ponto. Estende-se à revolução russa, com o regime de Lenine e Stalin, à revolução chinesa, com o regime de Mao-Tsé-Tung, à revolução iugoslava, com o regime de Tito, à revolução coreana, com o regime de Kim Il-sung, à revolução vietnamita, com o regime de Ho Chi Minh, à revolução cubana, com o regime de Fidel Castro, e assim por diante.

As revoluções comunistas mencionadas têm sido concebidas como aplicações práticas das ideias desenvolvidas pela teoria marxista. Convém lembrar, no entanto, que a grande maioria dos líderes revolucionários é formada por pessoas culturalmente toscas, que não se inspiraram na grande obra de Marx. Inspiraram-se numa obra menor, de estilo panfletário: o “Manifesto do Partido Comunista”, de 1847. O Manifesto contém, em estilo minimalista, os princípios fundamentais da doutrina marxista, e é, claramente, uma conclamação política. Haveria, portanto, no fascínio que está sendo considerado, continuidade entre a grande obra, o Manifesto e as revoluções comunistas que se seguiram.

A linha mestra do presente artigo irá destacar e comentar alguns tópicos do Manifesto, como fonte de reflexão sobre a relação dos intelectuais com o marxismo.

 

  1. “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”.

 

A luta de classes como dínamo da história é considerada a ideia central da teoria marxista, seu princípio fundamental.

No presente texto, não se trata de trabalhar o tema, mas de pontuar algumas questões.

O que é mais importante para o curso da história? Os antagonismos de classes ou os antagonismos dos opressores entre si? No século XX, duas Guerras Mundiais mostram de maneira sobeja as contradições entre opressores.

A questão pode ser abordada por outro ângulo. Freud mostra, de maneira eloquente, e em diversos momentos, que, entre oprimidos e opressores, não há apenas ódio e revolta. Oprimidos podem identificar-se com seus opressores, através do ideal cultural, de modo tão forte que mantém certas civilizações por longo tempo,

Por outro lado, oprimidos podem amar e suportar seus opressores, na medida em que se sentem protegidos, por ter seu trabalho e sua subsistência garantidos, ou por se sentirem de algum modo acolhidos. O patrão-bom-pai pode ser uma realidade subjetiva, com sobrevivência sustentável e duradoura, superando o ódio ao pai, naquilo que Freud chama de “complexo paterno”.

Para problematizar ainda mais a questão, existe a concepção presente em análises materialistas que enxergam a história moldada por condições econômicas, agrícolas e demográficas, mais do que por guerras, revoluções ou líderes políticos. Enfoque totalmente diverso, a partir do qual alguns historiadores postulam: o fato mais importante na história da Europa, nos últimos 500 anos, foi a introdução, na alimentação, da batata trazida dos Andes peruanos.

É possível, então, que o dínamo da história não seja um só fator, mas, sim, multifatorial.

 

  1. “Os comunistas podem resumir sua teoria nessa fórmula única: abolição da propriedade privada”.

 

Marx considera a propriedade privada dos meios de produção como a mais perfeita expressão do modo de exploração da classe operária pela burguesia industrial. Sendo assim, o que se busca é a abolição da propriedade privada e a centralização de todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado. Ou seja, em vez de propriedade privada e livre mercado, uma economia estatizada e planificada.

Nas duas principais revoluções comunistas, a russa e a chinesa, a abolição da propriedade privada foi radical, com estatização e planificação da economia.

A União Soviética conseguiu êxitos grandiosos. Derrotou a Alemanha de Hitler. Participou com desenvoltura da corrida nuclear, durante a Guerra Fria. Alcançou sucessos na corrida espacial, tendo lançado o primeiro satélite (Sputnik), enviado o primeiro homem ao espaço (Gagarin) ­e o primeiro foguete à Lua (Lunik). Entretanto, quando Gorbachev iniciou uma era de reformas, a glasnost (transparência) e a perestroika (reestruturação), todo o edifício do Império desmoronou da noite para o dia. Seguiu-se período turbulento, com criação de economia de mercado.

A revolução chinesa, no início, colecionou grandes fracassos. O primeiro deles foi o Grande Salto para a Frente, causador de grande fome e muito mais miséria. O segundo foi a Revolução Cultural, que isolou a China do mundo e trouxe graves conflitos internos. Com a morte de Mao Tsé-Tung, a ascensão de Deng Xiaoping traz o que muitos consideram uma segunda revolução: a introdução de uma economia de mercado, com abertura para o Ocidente, mantendo estatizados, porém, setores estratégicos da economia, como bancos, ferrovias, usinas de energia, terras, e assim por diante. É o que o governo chinês chama de socialismo de mercado. O resultado foi impressionante. Em quarenta anos a China saiu de país miserável para a economia mais pujante do mundo. Deng Xiaoping fez, de maneira habilidosa, o que Gorbachev tentou, de modo desastrado.

O que há de comum em todas as formas de socialismo é a propriedade social dos meios de produção. Como já assinalado, isso aconteceu de modo radical nas revoluções russa e chinesa. Na China atual, isso ocorre com cerca de 40% da economia, e tende a cair. Trata-se de regime socialista ou capitalista? Quando se toma a expressão socialismo de mercado, qual o termo mais importante: socialismo ou mercado? Ora, não há dúvida de que é o termo mercado, foi ele que impulsionou a economia chinesa. A China é hoje um país capitalista. Alguns usam a categoria capitalismo de Estado.

 

  1. “As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”.

 

Para Marx, todo regime é uma ditadura de uma classe sobre a outra. Sendo assim, depois da revolução deve prevalecer a Ditadura do Proletariado, expressão que não está no Manifesto, mas com a qual consente.

Motivo pelo qual depois de toda revolução comunista vigora um regime totalitário. Muito poderia ser dito a esse respeito, mas, por economia de texto, os comentários ficarão restritos a alguns aspectos do regime estalinista.

Segundo o historiador Harari, o processo de coletivização da agricultura custou entre 4,5 e 8,5 milhões de vidas, devido ao extermínio de antigos proprietários de terras.

Outro dado importante: opositores, dissidentes ou simplesmente suspeitos foram confinados em cerca de 500 campos de concentração (gulags), dispersos por toda a União Soviética. A sana persecutória atingiu inclusive aliados e camaradas do próprio partido, no que ficou conhecido como Grande Terror. Para impor sua mão de ferro, Stalin expurgou ou mandou fuzilar milhares de líderes, militares e partidários comunistas O mais conhecido é Trotsky. Alguns outros: Kamevev, Bukharin, Kirov. Sem contar o grande economista Kondratiev, que, como inúmeros outros cientistas famosos, morreu fuzilado.

Regimes totalitários, além da centralização, do furor igualitário e da tirania, carecem de transparência e de métodos de autocorreção.

 

  1. “A exploração de uma parte da sociedade por outra só se dissolverá completamente com o desaparecimento total dos antagonismos de classe”.

 

Uma sociedade sem classes! Eis a quintessência da ideologia marxista!

Raymond Aron sublinha que Marx e os marxistas advogam para suas teorias um caráter científico. Cumpre, no entanto, observar. 1. A luta de classes como dínamo da história. 2. O papel revolucionário de um salvador coletivo atribuído ao proletariado. 3. O fim da pré-história graças à Revolução. 4. O reino da Liberdade, numa sociedade sem classes. 5. O papel infalível do Partido Comunista na condução do proletariado.

Para Aron, é fácil identificar as origens judaico-cristãs da teoria marxista. Um profetismo imanente e uma fé numa classe escolhida e num Partido-Igreja. O paraíso desce do céu para a terra, mas continua exigindo sacrifício. É a religião judaico-cristã substituída por uma religião secular.

A quimera de uma sociedade sem classes sempre esteve muito longe de todas as revoluções comunistas. Ainda há quem considere a China um regime comunista… Para os desavisados: a China é o segundo país no mundo com maior número de bilionários (em dólares). Só perde para os Estados Unidos. Mesmo assim, não por muito tempo.

Os países que mais se aproximaram da utopia de uma sociedade sem classes são os escandinavos, por meios em nada marxistas.

Os seres humanos são fundamentalmente desiguais.

 

  1. “Os objetivos dos comunistas só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente”.

 

E ponha violência nisso. As estimativas variam de 40 a 100 milhões de mortes com as revoluções comunistas, dependendo do método de avaliação. Na melhor das hipóteses, uma cifra estarrecedora.  Algo só comparável ao morticínio causado por outro totalitarismo, o nazista.

Segundo Ernest Jones, certa feita um ardente bolchevista comentou com Freud que o advento do comunismo resultaria em alguns anos de miséria e caos, e que a isso se seguiriam paz universal, prosperidade e felicidade. Reação de Freud: “Disse-lhe que acreditava na primeira metade dessas coisas”.

Poderia ser argumentado: então, estamos sem saída, pois os países democráticos também são responsáveis por milhões de mortes e demasiadas atrocidades!

É verdade. Com uma única diferença: a democracia tem mais meios de autocorreção. Já o totalitarismo só se corrige quando desaba. A China? Uma exceção que confirma a regra.

 

  1. “Os proletários nada têm a perder a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”

 

Exortação vibrante!

Mas, que pena. A classe operária nunca se revelou revolucionária. Uniu-se, sim, para lutar por sua ascensão numa sociedade de classes. Em numerosos países alcançou o denominado Estado de Bem-Estar Social, e tornou-se uma classe conservadora.

Todas as revoluções comunistas aconteceram em países feudais, muito pouco industrializados. E, como foi visto, nos principais deles houve evolução para a economia de mercado.

A história trouxe, para a teoria marxista, uma grave ironia. Caminhou-se do feudalismo ao capitalismo passando pelo comunismo.

 

Momento de concluir.

Cabe, novamente, a pergunta: o que leva intelectuais como Sartre e Merleau-Ponty à militância pró-soviética, em plena época estalinista? Só é possível vislumbrar uma resposta: uma paixão cega pelo marxismo. Assim como intelectuais alemães viveram paixão cega pelo nazismo.

A escrita de Marx, assim como a oratória de Hitler, são ingredientes dessa paixão. Quem não se toca com a seguinte   formulação, extraída do Manifesto: “Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”.

O problema é que tamanha eloquência não foi acompanhada da devida fundamentação, e o legado da história comprova isso. Além do mais, a militância traz, do marxismo, visão ingênua e idealizada, completamente distante daquela que existe nos países que viveram ou vivem a experiência comunista.

Um argumento poderia ser trazido: por que esse artigo logo agora, quando o Brasil e o mundo vivem uma onda de extrema direita? Logo agora, que “a cadela do fascismo está no cio”?

Exatamente por isso. Grande parte do combustível que alimenta a extrema direita provém de erros crassos da esquerda. A começar pela insistência nessa polarização anacrônica! O que ocorre ultimamente no Brasil? Vota-se em Bolsonaro para ficar livre do Lula; depois, vota-se em Lula para ficar livre o Bolsonaro! Jogo inconsequente e destrutivo, que deixa de lado nosso principal problema.

E qual é nosso principal problema?

Pode-se apontá-lo sem hesitação: é a delinquência das instituições constitutivas de nossa democracia.

Desde a Revolução Francesa, as democracias têm sido constituídas a partir de Três Poderes:  Executivo, Legislativo e Judiciário. Estrutura que divide responsabilidades entre as instituições e que propõe o controle e a regulação de umas pelas outras. Acontece que, no Brasil, principalmente após a Constituição de 1988, tais instituições relaxaram suas finalidades, e fizeram um conluio para extorquir a sociedade. Eis o nó górdio da sociedade brasileira: os únicos que poderiam aprimorar as instituições (por exemplo, por meio de reforma política ou reforma do Judiciário), são os menos interessados em fazê-lo.

Problema de difícil solução, que não se resolve com a eleição de um novo Presidente. Existem pistas para o caminho. Incertas e imprevisíveis. O papel da imprensa. A emergência de um líder consequente. As redes sociais. Tendo como objetivo a transparência das instituições e a mobilização da sociedade. A débil esperança é de que teremos, um dia, uma primavera brasileira.

 

 

 

 

 

 

 

 

4 Comentários

  • Ilka Franco Ferrari disse:

    Boa tarde! Como sempre, ao seu estilo, texto que não deixa o leitor sem reflexões. Gostei.

  • Celso Rennó Lima disse:

    Muito bom!
    Esvkauuitad questões do nosso dia a dia!

  • Caro. Não estudo a área política nem as filosofias ou a área psi. Sou só ex-médico, agora biólogo e molecular, apreciador da evolução e tentando contribuir. Indico o livro que lhe anexarei, de filósofo que considero bom, agora interessado e economia ‘Principles for Governance’, Springer 2023. Contribuo para o livro com um capítulo ‘Metabolic Imperative’. Indica-se que o marxismo já está superado, apesar de muito importante. Há possibilidades de melhorias sociais por ações estatais ao se introduzir sistema econômico interno aos países, distributiva e democrática = socialismo democrático, livre de imposições externas, que configuram ‘outra economia’. Fazer conviver as duas. Já há aplicações deste modelo que estão funcionando. Pode ser que seja aplicado mais amplamente. Abs.

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