Roda de prosa

 

Uma tradição interiorana em nosso meio é a roda de prosa. Reunião espontânea de pessoas, numa praça, num quintal ou num bar, para conversar sobre tema emergente. Conversa solta, sem ordenador e sem hora para acabar. Ideias fluem a partir de cada fala e buscam concatenação não se sabe onde. O resultado é variável, mas costuma surpreender. Tal como acontece certo dia.

O povoado do Cocho d’Água é sacudido por uma bomba: a trágica morte de Zezinho Pintor. Sua moto derrapa numa mancha de óleo no asfalto e ele termina debaixo de uma carreta de minério. O impacto nas pessoas é causado não apenas pela brutalidade da morte, mas também por outros aspectos: o falecido é relativamente jovem (37 anos), competente, pai de dois filhos pequenos e muito querido por todos.

No sepultamento, o clima é de comoção. Finda a cerimônia, as pessoas voltam tristes e cabisbaixas para suas casas. Algumas preferem dirigir-se ao bar Guincho da Saracura, no Cocho d’Água. Uma a uma ali se acomodam e formam pequena roda. Jorge Velho, carpinteiro sisudo, homem de palavras poucas e certeiras. Zeca Brito, seu auxiliar e sua sombra, inculto mas perspicaz. João Justino, fazendeiro e comerciante, um dos líderes do lugarejo. Emengarda, autoritária e implicante, dona de casa exemplar. Belarmino, autodenominado filósofo fracassado, hoje, criador de gado. Dr. Bonifácio, advogado de Belo Horizonte, com casa de campo em Rio Acima, capaz de criar polêmica até em conversa de botequim.

— Nós nunca mais vamos estar com o Zezinho. Este “nunca mais” é terrível! –exclama Jorge Velho.

–Mas o padre garante que na vida eterna haverá um reencontro! –retruca Emengarda.

–A vida eterna é cortina de fumaça para esconder a triste verdade: a morte é perda irreparável –rebate Dr. Bonifácio.

–A palavra é esta: perda. A morte é uma perda, maior ou menor. Quando é uma pessoas velhinha, ainda dá para suportar –pondera Zeca Brito.

–Infelizmente, nem sempre é assim. Imagine a dor de minha amiga, que recentemente perdeu um filho. Creio que é o maior sofrimento que um ser humano pode viver. Pais que perdem filhos e nunca mais se recuperam –garante Emengarda.

–Não é só perda. Noto outra preocupação, principalmente nas pessoas mais próximas: o que é que deixei de fazer para evitar a morte! Por que não lembrei o Zezinho do perigo das manchas de óleo! Alguma coisa como uma culpa. Isso é muito comum, embora quase sempre um absurdo –argumenta João Justino.

–É o caso de Dona Leonor, cujo filho suicidou-se, pulando do viaduto de Nova Lima. Ela praticamente enlouqueceu, dizendo que a culpa era dela! –lembra Emengarda.

–Vocês falam de perda e culpa. Para mim, a questão é outra. A morte traz o fim da vida. A ideia de que a vida tem um fim não é suportável. As pessoas gostariam de ser eternas, como Deus! Já fui assim. Mudei. Aceito bem a ideia de que, um dia, irei embora desse mundo. Gostaria de viver muito, porém, não para sempre. Se me garantissem que eu viveria para sempre, hoje, eu morreria de tédio –filosofa Belarmino.

— Vocês tratam a morte como um mal. Mas, a morte pode ser um bem! Para pacientes terminais, por exemplo. Existem discussões calorosas mundo a fora sobre direito à eutanásia. E existe morte que traz alegria, até comemoração. Quando morre um inimigo! Tenho um conhecido que diz, de maneira brincalhona:  “Sempre leio os anúncios fúnebres; de vez em quando, trazem surpresas muito agradáveis!” –provoca Dr. Bonifácio.

–E existem mortes que provocam risos –acrescenta João Justino.

–Risos? Como assim? –indaga Emengarda.

–Vou trazer um caso verídico. Um freguês perdeu o pai num acidente. Quando ele conta como foi o acidente, as pessoas, em vez de ficarem constrangidas, como é devido, começam a rir. Riso nervoso, é claro, mas é riso. O acidente foi assim: um boi caiu em cima da cabeça do pai dele. Como aconteceu? O boi estava pastando na beira de um morro, em dia de chuva; o barranco desmoronou e ele despencou lá de cima, matando o homem.

–Conheço caso parecido e também verídico. Um parente meu viaja com o pai ao lado, na estrada para Brasília, com o carro em alta velocidade, quando um cavalo entra na pista. Resultado: há o atropelamento e seu pai morre com o cavalo sentado no seu colo –conta Zeca Brito.

–Caso puxa caso. Outro freguês, vindo de longa viagem, já pertinho de casa, na estrada de Nova Lima, dorme no volante, e o carro rola a ribanceira. Ele está com cinto de segurança, e a causa da morte não é nenhuma pancada: morre porque engole a dentadura –explica João Justino.

–Só faltava essa! Rir da morte! Unir o trágico ao cômico! Quem dera que a vida fosse sempre assim! –exalta Belarmino.

–Quem dera! Mas não é –finaliza Jorge Velho.

 

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